Excelente texto de António Baptista Coelho:



A ideia de uma cidade acolhedora
Quando penso em segurança urbana penso, imediatamente, num espaço agradável onde me sinta seguro, onde me sinta em paz; e, de certa forma, associo esta paz ao bem-estar. Integro, assim, como arquitecto e como habitante, a segurança e o bem-estar. Acho que o bem-estar urbano sem segurança não existe. E a segurança só por si pode até criar espaços excessivamente controlados.

A intervenção urbana deve visar a criação ou a reconstituição de uma cidade acolhedora, e esta qualidade tem a ver com o viver em conjunto, que é o assunto urbano fundamental.

E sobre estas matérias escreveu Gonçalo Byrne:

“A grande diferença da cidade para o edifício é que a cidade é uma obra que gera espaços compartilhados onde as pessoas estão condenadas a encontrar-se; é o espaço público. O facto de ser compartilhada justifica a gestão democrática, ou seja, a gestão que não exclui.” (1)

É fundamental que o urbanismo vise a construção ou a reconstrução de uma cidade acolhedora, que seja expressivamente amiga das pessoas e designadamente daquelas mais sensíveis e desprotegidas. Temos de fazer tudo para que as nossas cidades sejam amigas dos seus habitantes. Amigas no sentido da protecção e do apoio a quem nelas habita, e entre estes, privilegiando-se, naturalmente, os grupos sociais mais sensíveis e mais significativos, que são as crianças e o idosos.

Junta-se, em seguida, uma citação do pediatra Mário Cordeiro e do arquitecto Tiago Queiroz, que integra um excelente texto integrado no n.º 4 dos Cadernos Edifícios do LNEC (2), e que sintetiza bem os riscos e os benefícios da cidade, numa perspectiva que visa exactamente uma cidade humanizada e vitalizada, e uma cidade amiga dos habitantes mais sensíveis.

“O aparecimento e desenvolvimento das cidades representou um salto qualitativo na história da Humanidade, proporcionando, pela primeira vez ao ser humano, um espaço de tempo, tranquilidade, calma e «folga», associado à possibilidade de conservação de alimentos e de água, bem como de melhor defesa contra inimigos, predadores e catástrofes naturais.

O melhor ambiente vivido nas cidades teve um impacto muito positivo na saúde das populações, e a passagem de uma sociedade de «sobrevivência diária» para uma sociedade de relativa abundância trouxe com ela as profissões especializadas, as trocas comerciais, o intercâmbio de géneros, culturas e pessoas, a escolarização, as artes e ofícios e os pensadores, filósofos e políticos. As crianças, que anteriormente passavam imediatamente da infância à adultícia, ganharam, entre muitas outras coisas, o direito à adolescência.



Actualmente, o conceito de cidade e a sua prática sofreram algumas disrupções, distorções e desvios, criando novos e intensos problemas, no cerne do qual estão os sistemas de transportes, a poluição, a perda de identidades e de sentimentos de pertença, e a descaracterização do espaço público, designadamente a «perda da rua» enquanto espaço lúdico, relacional e estético. As crianças e jovens são os primeiros, a par dos idosos, a sofrer com isso. Não se creia, contudo, que a culpa está nas cidades, mas sim na forma como por vezes estão a ser planeadas e geridas. As cidades são, para a população pediátrica, uma janela de oportunidade, e têm largos benefícios em termos culturais, sociais e de saúde.

Assim, o que há a fazer é rever criteriosamente, de uma forma transdisciplinar, quais são as necessidades do ser humano e de que modo as estruturas existentes lhes podem responder, sem recorrer a soluções tão demagógicas como ineficazes, do tipo «implodir para refazer de novo.»



Redimensionar os espaços de habitação, a sua articulação e a multiculturalidade e carácter transgeracional, redimensionar os espaço comercial, lúdico e laboral, e fazer cada vez mais da cidade um aglomerado de «pequenas aldeias» (bairros), como ainda existem em tantas delas, em que as grandes deslocações sejam muito mais limitadas e os percursos a pé sejam privilegiados, em que as hipóteses de encontro de pessoas da família, amigos, vizinhos seja maior, em que os serviços de educação, saúde, sociais, etc, possam articular-se mais facilmente, poderá ser um desafio à nossa capacidade, mas ao mesmo tempo um desafio intelectualmente estimulante, com efeitos práticos de grande mais-valia, e que beneficiará as crianças e adolescentes de uma forma indelével. Há que reconhecer, evidentemente, o que está mal, mas condenar as cidades sem entender onde está o cerne da questão, poderá ser destruir uma das mais maravilhosas construções sociais que a Humanidade alguma vez produziu.”

E Mário Cordeiro sublinha, assim, a importância da construção e reconstrução de vizinhanças de proximidade bem definidas e agradáveis, tornando-se a cidade um espaço estrategicamente mais compartimentado, apropriado, diversificado e atraente; um desígnio hoje urgente, tanto devido a aspectos de melhor identificação e controlo dos espaços que se habitam, como por aspectos essenciais ligados à vital melhoria da paisagem urbana.

É de grande importância considerar as cidades como espaços amigáveis relativamente aos seus habitantes. Por um lado é essencial que cada um, na sua vizinhança e no seu bairro se sinta rodeado por um espaço globalmente seguro, amigável e afectuoso, que se desenvolva em continuidade. Por outro lado é essencial que o critério de amigabilidade do espaço citadino habitável seja respeitador daqueles mais sensíveis a meios urbanos agrestes e perigosos. Logo, fica bem claro que os espaços urbanos e residenciais têm de ser desenvolvidos considerando-se os grupos sociais que mais carecem de protecção e de enquadramento, e nestes as crianças e os idosos sobressaem claramente.

Serão, assim, abordadas, em seguida, de forma breve, algumas facetas que se julga serem essenciais para a recuperação e para a redescoberta, por todos nós, do que pode ser uma cidade amiga, uma cidade que inspire confiança a quem a habita; são elas: (I) a cidade convivial e fisicamente acolhedora; (II) sobre o bom projecto urbano, (III) as questões de acessibilidade; (IV) a cidade da criança e do idoso, que é afinal, a cidade de todos; (V) a importância dos aspectos de gestão local; (VI) a relação entre reabilitação urbana e segurança pública; e, para rematar, (VII) a relação entre bom urbanismo e policiamento de proximidade ou comunidade.



(I) Uma cidade convivial e fisicamente acolhedora

Joaquín Arnau (2000) (3) refere que “cidade deriva de civitas, que por sua vez deriva de civis: cidadão. Para os romanos, o cidadão chama-se assim porque a sua razão de ser é andar em grupo/companhia: coeso. O cidadão constitui a cidade: não o contrário “( p.24) … “Os homens coabitam porque convivem: vivem em comum. E colaboram: trabalham juntos” (p. 28)…

Mas, na verdade, e tal como lembra Eduardo Prado Coelho (2005) (4), “há cidades onde os dias morrem... Procuro um jornal num domingo em Lisboa. Nos domingos as ruas estão vazias... A cidade é uma cidade morta. Cada hora de uma cidade morta é uma hora morta. Cada minuto de uma cidade morta é um minuto que morre como um insecto à nossa frente... Há dias em que a cidade está adormecida e vai morrendo lentamente.”

É fundamental desenvolver a vida e a afectividade nas cidades, que não podem ser apenas estruturas funcionais, têm de se humanizar, têm de ser sítios onde haja tempo e disponibilidades físicas que propiciem a estada e o convívio, só assim serão cidade efectivas e afectivas, tal como apontam Dusapin e Leclercq numa obra recente (2004) (5). E para se desenvolver uma efectiva afectividade citadina e residencial, o que constitui mais um aspecto crucial da humanização do habitar, é importante favorecer, como defende Larry Ford (2000) (6), “uma cidade com fachadas permeáveis e com grande variedade de acessos ao nível da rua, que é muito mais dinamizadora da vida cívica do que uma cidade caracterizada por estruturas do tipo fortalezas com paredes cegas e portas invisíveis”, porque “a vida nas ruas é definida e guiada pelas características dos edifícios envolventes.”

Nestas matérias há que diagnosticar adequadamente os problemas, entre os quais se destacam: a congestão de tráfego; o crescimento urbano caótico; a decadência física; a existência de muitas pessoas desocupadas; o colapso institucional; e o aumento do crime.



Alain Cluzet (2003) (7) defende a urgência de se reconquistarem as cidades como espaços humanizados e de vida, tanto no que se refere aos usos e morfologias, como nas próprias relações sociais. Mas para uma tal reconquista as cidades devem (re)qualificar-se como espaços devidamente cuidados e humanizados, aos mais diversos níveis, evidenciando-se aqui a grande importância dos aspectos básicos ligados, designadamente, ao conforto ambiental, com algum destaque para o conforto acústico (ausência de ruído incomodativo), ao mobiliário urbano adequado e à oferta de evidenciadas condições de limpeza, aspectos estes, que se podem considerar como de primeira linha na melhoria de uma qualidade urbana global e que são apontados num livro coordenado por Myron Magnet (2000) (8), que integra variadas temáticas e entre as quais se salienta, por exemplo: que : “o ruído elevado não é apenas um trauma, pode também provocar danos físicos irreversíveis” (Julia Vitullo-Martin, p.479); que “o facto de a cidade ser limpa dá ... um sentimento de que as coisas funcionam, de que a sociedade não está condenada, e de que existe ordem” (David Lowe, p. 418); e que “quando tivermos interiorizado a natureza profunda dos equipamentos da via pública como símbolos da ordem permanente instituída ao longo dos tempos, perceberemos como é importante a sua forma externa” (Roger Scruton, p. 415).”

E não tenhamos dúvidas que sítios ruidosos, sujos e vandalizados cooperam activamente no círculo vicioso da insegurança urbana.

Uma insegurança urbana que será reduzida, naturalmente, na medida em que mais pessoas usem com intensidade a vizinhança e o bairro.

Mas para isso o bairro tem de ter uma continuidade física, que actua como cenário protector, e uma intensidade de usos, que actue como verdadeira extensão da habitação de cada um, em sequências urbanas de proximidade marcados por equipamentos que estimulem o convívio: o café da esquina, a livraria, o bar, etc.; equipamentos estes - o inspirado “terceiro sítio”, ponderado por Ray Oldenburg (9) - que simultanemamente com este papel convivial proporcionam mais segurança pública, seja devido a essa mesma vitalidade urbana induzida, seja pela vigilância natural que desenvolvem nos espaços públicos contíguos.

Mas, como sabemos, muitos conjuntos residenciais não têm tais equipamentos, estando o piso térreo vazio de uma tal presença viva e protectora.

Aqui é necessário referir que a rua urbana com natural continuidade constitui o melhor cenário de integração para estes equipamentos, assegurando-lhes dinamização mútua, ritmo e concentração estratégicas e um alongado potencial de ligação com muitas vizinhanças residenciais.

E a rua equipada e estruturadora de um tecido urbano com continuidade serve também de ponto de encontro de diversos tipos de habitar e gostos de habitar, dinamizando proximidades entre diversos grupos sociais e etários, o que é condição acrescida de animação e, naturalmente, de segurança urbana.



Mas a rua, como sabemos, teve ultimamente muitas das suas funções menorizadas, e muitas vezes quase desapareceu em soluções sem ruas, sem espaços de rua alongados, bem definidos e naturalmente bem controláveis por quem usa a rua; há mesmom um livro que coloca no seu título a questão: “O que aconteceu à Rua Principal?” (10)

O que aconteceu, frequentemente, foi a disseminação de blocos habitacionais em espaços exteriores mal definidos, que em vez das velhas esquinas urbanas ocupadas por lojas, têm muitas passagens entre edifícios e por baixo de edifícios, amplas extensões exteriores com usos pouco definidos e por vezes caracterizadas por péssimas condições de manutenção, grandes empenas sem janelas, que proporcionam sítios sem visibilidade sobre o que se passa na rua e, além de tudo isto, substituindo a escala da rua em que era possível mandar recados para as janelas das habitações, temos frequentemente blocos de grande altura, onde a partir de cerca do 6.º andar praticamente ninguém quer saber do que se passa lá fora.

Não seria necessário sublinhá-lo, mas tudo isto, que tem a ver com diversas soluções de urbanismo e, sublinho, de mau urbanismo, tem também a ver com a questão da segurança e insegurança urbana; ou por outras palavras com a questão essencial de nos sentirmos, ou não a habitar, verdadeiramente, com agrado e à-vontade a cidade onde moramos.

E nem há justificações económicas válidas para uma tal situação, pois também é possível fazer cidade densa e bem estruturada por ruas e outras soluções dinamizadoras do convívio, com edifícios mais baixos e mutuamente bem conjugados; acontece que esta possibilidade depende de uma melhor qualidade arquitectónica pois é mai difícil fazer cidade bem habitada do que um edifício isolado.



E há, assim, todo um amplo catálogo de soluções arquitecturas densas, conviviais, bem habitáveis e naturalmente seguras, devido às relações visuais que proporcionam sobre os espaços públicos que rodeiam e aos quais dão forma e carácter; e este catálogo de pequenas ruas, de passagens e impasses, de pátios residenciais, de pracetas e praças urbanas e de variadas misturas de equipamentos e de tipos de edifícios de habitação, estão aí para serem usados, sem ser preciso aplicar, sistematicamente, as soluções de condomínios privados, até porque estas geram envolventes urbanas sem vida e portanto desagradáveis e potencialmente menos seguras.

Afinal, tal como escreveu António Pinto Ribeiro (2004) (11), “as praças são a razão de uma cultura democrática e a sua frequência é sintoma claro de democracia ... O condomínio (fechado)... representa uma cultura do ressentimento ... responsável pela exclusão da comunicação cultural com o outro...”



E ainda nestas matérias importa sublinhar que a partir de uma estratégica mistura de ligações entre equipamentos e habitação - desde simples lojas a equipamentos maiores - e de misturas entre diversos tipos de edifícios com acessos privativos e directos ao exterior público, com acessos comuns amplos e bem situados e com pequenos quintais e pátios privativos bem marcados e visíveis ou com espaços públicos bem ligados à habitação, é possível fazer viver boa parte da envolvente do espaço edificado, tornando grande parte do respectivo exterior público que lhe é contíguo, um espaço também mais vivo e, e naturalmente mais acolhedor e mais seguro.

Mas, repete-se, se os edifícios de habitação estiverem isolados e forem tão altos que pouco têm a ver com o que se possa passar à sua volta, se os espaços exteriores não tiverem "princípio meio e fim", escapando-se como manchas de óleo entre esses edifícios, e se os próprios equipamentos funcionarem como elementos que, em vez de darem coesão à cidade, contribuem para a descontinuidade urbana: então não teremos cidade viva e as pessoas vão ficar protegidas nos seus apartamentos, entrando para eles directamente pelas garagens e ligando muito pouco ao que se passe lá fora.

A partir destas bases de análise, e citando especificamente Oscar Newman, já em 1984, Luís Soczka (12) sintetizava algumas condições que contribuem para o desenvolvimento de espaços habitacionais "defensáveis" e apropriáveis:

• capacidade do ambiente físico criar zonas de influência territorial, como tal claramente percepcionadas pelos residentes;
• capacidade do ambiente físico proporcionar a natural acção vigilante dos residentes;
• capacidade do ambiente físico influenciar a percepção da identidade colectiva dos residentes;
• e desenvolvimento de uma justaposição de "zonas de segurança" na área abrangida pelo respectivo conjunto urbano.

(II) Sobre o bom projecto urbano

Em primeiro lugar, fazer um bom urbanismo é, também, desenvolver boas condições de segurança urbana e não é fácil fazer um bom urbanismo, com cidade viva, participada por uma grande diversidade de grupos socioculturais, sem misturas sociais disparatadas, e sem criação de guetos onde se concentrem grandes números de pessoas socialmente desfavorecidas.

Em segundo lugar, não é fácil fazer um bom urbanismo tratando-se ao pormenor o espaço disponível, pois quando se tem muito espaço e quando o projecto urbano tem deficiências ou não é adequado aos seus habitantes, começa, frequentemente, a sobrar espaço; mas o espaço urbano não pode sobrar, deve ter limites, deve ter controlo, e não pode haver espaços esquecidos, que são espaços de inseguros!

De certa forma há aqui, frequentemente, uma contradição no caso da habitação de interesse social: interiormente o espaço doméstico é gerido com enorme rigor, enquanto, exteriormente, o espaço público é, frequentemente, tratado de forma residual, equipado deficientemente ou mesmo não equipado e, por vezes, deixado ao abandono, com todas as más influências daí decorrentes.



Em terceiro lugar há regras básicas do bom urbanismo que são igualmente regras básicas da segurança, designadamente: a continuidade urbana a todo o custo, a ausência daquelas situações em que o espaço se escapa pelas esquinas, e entre blocos com grande sempenas cegas, a previsão de uma visibilidade estratégica e contínua ao longo do espaço público e sobre este espaço a partir dos edifícios envolventes, o combate sem tréguas à desorientação urbana, considerando especificamente as pessoas mais sensíveis, a criação de um espaço público com uma vivência pelo menos mínimas empre que possível máxima, a responsabilização e manutenção de cada metro quadrado de espaço urbano e o seu adequado equipamento em termos de espaços e elementos extremamente duráveis, e a adequada previsão do cenário nocturno, em termos funcionais, de segurança e de atractividade.

E é fundamental que tudo isto se articule com a gestão local, visando-se um desígnio essencial de criação de condições óptimas para se desenvolver uma elevada estima dos habitantes relativamente ao seu espaço de habitar, às suas vizinhanças e aos seus espaços públicos. É fundamental criar estas relações fortes de apropriação e de satisfação para com as soluções urbanas e de habitar e tratá-las muito bem em termos de limpeza, manutenção e arranjo de pormenor, pois espaços mal amados, sujos e abandonados são espaços mal usados, e se alguns destes espaços estiverem fora da vista e do uso dos habitantes, então são sítios naturais de delinquência.

E é importante ter presente que as pessoas defendem melhor os espaços que consideram como seus e neles exigem melhor qualidade de manutenção e neles estão mais prontos a reagirem contra usos menos adequados; o que não acontece quando as soluções urbanas e habitacionais são pouco adequadas e frias; e nestas matérias é importante ligar, mais fortemente, a habitação à vida urbana, não interpondo entre uma e outra extensos e frequentemente inseguros espaços comuns.



O espaço urbano seguro é, como se tem defendido o espaço vivo e acolhedor, e é sempre o espaço da continuidade urbana, naturalmente visível e apropriado pela comunidade ou por cada pessoa ou família. E quando pertença da comunidade este espaço tem de ser uma espécie de sala de estar da vizinhança ou mesmo da cidade, e sendo-o , é um espaço com o qual se deve interagir naturalmente a partir das janelas que o rodeiam, desenvolvendo-se um controlo do espaço público muito natural, pela continuidade do espaço que é criada e pelas atraentes referências urbanas de orientação que povoam esta continuidade urbana, e que são elas próprias estratégicos e vitais elementos de segurança urbana, como é o caso dos acessos às habitações e às lojas.

Outro aspecto importantíssimo, que já foi aqui referido, é a questão da altura dos edifícios. Uma pessoa a partir do 5º, ou 6º andar, isola-se do que se passa no espaço público, é como se este deixasse de existir para ela, porque deixa de haver uma relação directa, deixa de haver a relação da voz, deixa de haver a possibilidade de a pessoa falar com alguém, na rua, a partir da sua janela.

Isto não quer dizer que não devam existir construções mais altas para pessoas que queiram viver mais isoladas. Mas, "por regra", obrigar boa parte das pessoas a viver isoladas do espaço público, não pode ser. Pois a altura excessiva dos edifícios, além de reduzir a escala humana da cidade, aumenta a descontinuidade urbana, pois os edifícios mais altos têm de estar mais afastados entre eles, havendo espaços públicos mais extensos, e reduz drasticamente a capacidade de interacção entre as habitações e o espaço público, abrindo-se caminho à insegurança urbana.



E então quando pessoas que viviam precariamente em casas abarracadas de um único piso são realojadas nesses edifícios altos estão a juntar-se os problemas que acabaram de ser apontados, com o problemas da inadequação entre o tipo de realojamento proporcionado e os modos de vida adquiridos, ligados à terra e à vizinhança; e o resultado será mau e ainda pior quando se opta por fortes concentrações de pessoas dos mesmos grupos socioculturais desfavorecidos.

E importa ainda referir a barreira crítica que os edifícios altos constituem, frequentemente, para o uso do espaço público por idosos e crianças - que deixam de poder ir à rua sozinhas.


(III) As acessibilidades e o "eterno" conflito peão-veículo

Passando, agora, muito brevemente, às questões da acessibilidade e embora não seja esta uma reflexão sobre os conflitos entre o veículo e o peão, há que sublinhar que as matérias de insegurança urbana também se ligam a uma certa nova velocidade de vivência da cidade pouco humana e tantas vezes perigosa, que tornou o espaço público citadino muito pouco acolhedor para o peão, cujo espaço tem recuado frente ao do veículo, perdendo-se parte das funções de estadia e de diversas actividades antes aí desempenhadas.



E hoje há vias citadinas que são apenas estradas, há ruas que foram totalmente conquistadas pelos veículos, há até passeios, antes espaçosos, e que estão converidos em estacionamento de veículos e, recentemente, em circuitos para bicicletas; e não podemos ter quaisquer dúvidas que este tipo de condições são e serão aproveitadas por aqueles que encaram os peões como vítimas potenciais.

Não se encare esta posição como qualquer tipo de fundamentalismo, pois as zonas exclusivamente pedonais têm riscos específicos em termos de segurança urbana, apenas como esclarecimento de que a cidade que assim se faz pouco tem a ver com um espaço urbano acolhedor, agradável em termos de conforto ambiental e globalmente amigável.

Do recreio livre e do desporto citadino, ao andar a pé como conceito essencial de deslocação e de bem-estar físico, os peões têm de recuperar, urgentemente, o seu direito de cidade, que não deverá ser exercido, especificamente, contra o automóvel privado, mas apenas e exclusivamente contra tudo aquilo que afecta negativamente o seu conforto urbano em termos de deslocações e de estada e contra a bem conhecida persistência de cenários urbanos visual, ambiental e funcionalmente agressivos e insustentáveis; afinal os territórios que nos repelem e que, portanto, ficam ao abandono, transformando-se em zonas de insegurança.

E em Lisboa Chelas é um bom exemplo deste tipo de território, pois, tal como refere o Arqº Manuel Tainha (2000) (13), é “uma zona sombria” e “um território dilacerado”, onde "as pessoas vivem nos interstícios das grandes vias e o automóvel é soberano na cidade. As áreas residenciais são áreas residuais entre os sistemas de circulação.”



E nestas matérias da acessibilidade há que salientar as situações gravíssimas em que vizinhanças e mesmo pequenos bairros estão isolados fisicamente da cidade e, além disto, estão extremamente mal servidos de transportes públicos, criando-se um isolamento crítico, que além de aspecto essencial da ausência de qualidade no habitar, é também factor directo de desenvolvimento da insegurança urbana.


(III) Acidade da criança e do idoso, que é afinal, a cidade de todos

Mas, naturalmente, numa perspectiva de uma cidade mais acolhedora há que salientar as necessidades específicas de apoio físico, de vizinhança e de orientação para os os idosos e as crianças. E uma cidade mais amigável para idosos e jovens, afinal, aqueles que mais a usam, irá dinamizar mais o uso dos seus espaços públicos por estes grupos etários e também pelos outros, tornando-se, consequentemente, uma cidade mais convivial e mais segura.

Não se irá desenvolver aqui este tema, que merece abordagem específica, mas aponta-se , apenas, que o bem-estar residencial e urbano dos idosos e crianças depende, muito especificamente, de boas condições de estruturação e orientação urbana com continuidade, que estimulem o conhecimento da envolvente urbana, de conforto nas deslocações e na estadia no exterior, de proximidade a transportes colectivos e equipamentos comerciais, de protecção relativamente a veículos e de adequada integração urbana das respectivas habitações.

Sinteticamente os idosos e as crianças precisam de um ambiente urbano especialmente acolhedor e seguro, nas diversas facetas da segurança; e se esse ambiente existir eles estarão na rua, a habitar a rua e a cooperar para que a rua seja mais viva e segura - no caso contrário por vezes nem podem sair de casa, ou não vale a pena sairem de casa, com os resultados que são evidentes para a sua saúde física e mental e não podemos esquecer que, hoje em dia, são inúmeras as pessoas idosas que vivem auto-encarceradas em suas casas e, mesmo assim, numa constante inquietação por poderem ser assaltadas” (14); isto quando se geram círculos viciosos de pouco uso e de insegurança no espaço púiblico.



(IV) Uma gestão de proximidade eficaz

Naturalmente, há que sublinhar que tudo isto, todos este bons e maus exemplos, são fortemente influenciados e mesmo determinados pela existência ou ausência de uma gestão de proximidade eficaz, exercida em cada metro quadrado de espaço edificado e exterior; e aqui, se entendem bem, novamente, quer os benefícios de se poder trabalhar com espaços bem definidos, claramente apropriados e delimitados, onde são visíveis as diversas zonas de responsabilidade, o que acontece na cidade com continuidade urbana, quer os malefícios de se trabalhar nos tais espaços em mancha de óleo, pouco definidos e mesmo muitas vezes perigosamente ambíguos em termos de usos aí recomendados ou permitidos - por exemplo em termos de misturas entre tráfegos de peões e veículos - em termos das essenciais acções de limpeza e manutenção.

Devido ao perfil desta intervenção, essencialmente nas matérias urbanísticas, não se desenvolverá mais esta faceta da gestão de proximidade, que se considera, no entanto, vital na relação entre urbanismo e segurança, e não quero deixar de comentar que considerao que mesmo com policiamento de proximidade, igualmente estruturante nestas matérias, me parece poder funcionar quase como um parceiro directo e fortemente integrado nesta gestão local de proximidade; julgo que com resultados finais claramente potenciados, isto até porque julgo que certas funções da gestão local urbana se podem articular muito positivamente com fortemente com essa fundamental modalidade de policiamento.


(V) Reabilitação urbana e segurança pública, um breve comentário

Quanto às matérias de ligação entre a reabilitação urbana e a segurança pública elas podem ser sintetizadas referindo-se que os aspectos urbanos mal desenvolvidos ou não desenvolvidos, como a excessiva concentração de grupos sociais sensíveis, a utilização de mega-edifícios impossíveis de gerir, o uso de tipologias habitacionais inadequadas, a ausência de equipamentos de vizinhança e conviviais, a deficiente ou ausente continuidade urbana, as acessibilidades citadinas deficientes e a ausência de vizinhanças e espaços exteriores úteis e amigáveis, são aspectos que terão de ser abordados e resolvidos, caso a caso, com especial sensibilidade humana, social e urbana, em sede de um projecto regeneração urbana com especial qualidade, feito por arquitectos, e informado e acompanhado por um amplo leque de outros técnicos, entre os quais especialistas em segurança pública.



(VI) Entre bom urbanismo e policiamento de comunidade

Para terminar aponta-se que tal como refere Jane Jacobs (1961) (15), “a primeira coisa que deve ficar clara é que a ordem pública não é mantida basicamente pela polícia, sem com isso negar a sua necessidade. É mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos… a segunda coisa é que o problema da insegurança não pode ser solucionado pela dispersão das pessoas... Numa rua movimentada consegue-se garantir a segurança; numa rua deserta não… Deve ser nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado…; devem existir olhos para a rua…; a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, para induzir olhos atentos na rua assim como observação da rua a partir dos edifícios..."

Mas a ordem pública também precisa da polícia e aqui considera-se ser fundamental a dinamização do policiamento de proximidade, pois fica evidente que a “polícia orientada para a comunidade” está na continuidade natural das preocupações e das ideias que têm vindo aqui a ser expressas, designadamente, em termos de espaços residenciais vitalizados, “defensáveis”, responsabilizados, e associados a uma gestão local eficaz.

Uma acção deste tipo estrutura-se em torno de um agente que apoia em múltiplas pequenas ocorrências, habitualmente, de muito pouca gravidade, e um agente que, provavelmente, em pouco tempo conhece muitos dos outros agentes privilegiados da vida e da gestão diária dos sítios que lhe estão atribuídos; e “vemos” este agente a pé! Nas tais zonas urbanas mais amigáveis, vitalizadas e bem estruturadas. Mas para tal há que ter meios humanos numericamente adequados e depois há que considerar o resto do problema e no resto está também a criminalidade cada vez mais organizada e com meios mais perigosos e para esta tem também de haver respostas eficazes.

E esta verdadeira “polícia de comunidade” tem de ser orientada para a defesa e o desenvolvimento de uma verdadeira qualidade de vida, tal como é defendido por William Bratton e William Andrews (2000), que referem que “o policiamento da qualidade de vida é importante por três razões. Em primeiro lugar, porque a maioria dos cidadãos é mais sensível a situações como a prostituição, o pequeno comércio de droga, os excessos de ruído, o alcoolismo juvenil e outros delitos menores do que ao grande crime… Em segundo lugar … os ambientes convulsos atraem o crime e provocam o medo. Em terceiro lugar, porque os autores de crimes graves também cometem muitas vezes outros tipos de pequenos delitos; o policiamento da qualidade de vida permite aos agentes da polícia intervir junto destes grupos e por vezes impedir a ocorrência de crimes sérios.” (16)

Notas:
(1) Inês Moreira dos Santos e Rui Barreiros Duarte (entrevistadores), “Estruturas de mudança - entrevista com Gonçalo Byrne”, Arquitectura e Vida, n.º 49, 2004, p. 51.
(2) Mário Cordeiro e Tiago Queiroz, “A cidade, a criança e a saúde, contributos para uma mudança de paradigmas”, Lisboa e LNEC, Cadernos Edifícios n.º4, “Humanização e vitalização dos espaços público”, Março de 2006.
(3) Joaquín Arnau, “72 Voces para un Diccionario de Arquitectura Teórica”, 2000.
(4) Eduardo Prado Coelho, “Dias mortos”, Público – O fio do horizonte, 25 Janeiro 2005.
(5) Dusapin, F. Leclercq., “Villes affectives, villes effectives“, 2004.
(6) Larry Ford, “The Spaces between Buildings”, 2000.
(7) Alain Cluzet, “Au bonheur des villes“, 2003.
(8) Myron Magnet (org.), “Paradigma urbano – as cidades no novo milénio (The Millennial City)”, 2001 (2000), pp. 479 e 415.
(9) Ray Oldenburg, “The Great Good Place : Cafes, coffee shops, bookstores, bars, hair salons and other hangouts at the heart of a community”, 1999 (1989).
(10) Kennedy Smith, “What Happened to Main Sreet?”, in Historic Cities and Sacred Cities – Cultural Roots for Urban Futures”.
(11) António Pinto Ribeiro, “Abrigos: condições das cidades e energia das culturas”, 2004, p.17.
(12) Luís Soczka, "Espaço Urbano e Comportamentos Agressivos – da Etologia à Psicologia Ambiental", 1984.
(13) “O artista é o mais frio dos homens – entrevista com Manuel Tainha”, Arquitectura e Vida, 2000.
(14) Monteiro de Barros, “O imobiliário : 100 anos da vida de um imóvel – Jornadas de reflexão, Lisboa,” 2004, p.175.
(15) JACOBS, Jane, “Morte e vida das grandes cidades”, trad. Carlos Mendes Rosa, 2001 (1961), pp. 32, 35, 36 e 41.
(16) William Bratton e William Andrews, no livro organizado por Myron Magnet, Paradigma urbano – as cidades no novo milénio (The Millennial City), 2001 (2000), p.112.




Fonte: http://infohabitar.blogspot.com/